quinta-feira, 4 de junho de 2015

Bem estar e qualidade de vida x Longas jornadas de trabalho


 
Neste post iremos abordar um pouco do quanto o bem estar do caminhoneiro é afetado pelas suas condições de trabalho, este post é uma continuação da temática sobre  dos Determinantes Sociais de Saúde (DSS). Do ponto de vista do trabalho, a sociedade atual é rica em atividades que envolvem as pessoas no exercício das suas profissões durante as 24 horas do dia.

Fischer (2004) aponta que o trabalho realizado fora dos horários tradicionais – de 8:00 ou 9:00h até 17:00 ou 18:00h – faz parte dos fatores psicossociais que interagem no processo saúde-doença. A forma como o trabalho está organizado provoca impactos sobre o bem-estar e a saúde dos trabalhadores. Portanto, longas jornadas de trabalho ininterruptas ou com poucos momentos de folga para recuperação física e mental podem ser fatores que propiciem o aparecimento de patologias. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) no texto relacionado a guias sobre normas de trabalho já reconhece – Recomendação nº 178 de 1990 –, de maneira clara, a necessidade de tratamento diferenciado para os trabalhadores noturnos.

 Destacam-se na recomendação a jornada de trabalho que não ultrapasse 8:00h diárias; limite de horas de trabalho extraordinárias; compensação pecuniária, tanto para homens quanto para mulheres; proteção de segurança e de saúde; apoio em serviços sociais como transporte de casa para o trabalho e melhoria da qualidade do descanso; transferência de gestantes de turno noturno para o diurno e até possibilidade de aposentadoria antecipada para os que trabalham por período de tempo predeterminado (Bento, 2004).

A legislação brasileira faz adequações para as jornadas de trabalho noturnas, em termos de duração. O trabalho noturno, por exemplo, tem hora reduzida igual a 52 minutos e trinta segundos e a remuneração também é maior em 20% em relação à hora diurna. É considerado trabalho noturno aquele realizado entre 22:00h de um dia até 05:00h do dia seguinte. O enfoque de proteção à saúde fica bastante claro na legislação brasileira quando considera o trabalho em turnos e noturno como agente etiológico ou fator de risco de natureza ocupacional, caracterizado como má adaptação à organização do horário de trabalho, que entram no CID-10 como Z56.6, bem como outros CIDs, como o F51.2, grupo V (desenvolvimento de transtornos do ciclo vigília-sono devido a fatores não orgânicos) e G47.2, grupo A organização das escalas de trabalho em turnos ou em turnos irregulares – fato cada dia mais frequente para um grande número de trabalhadores – pode ocasionar o aparecimento de novos sintomas orgânicos e psicológicos.

Um estudo na aviação civil brasileira mostra que há deterioração física nos aeronautas pesquisados e que os sintomas físicos e mentais mais frequentes foram: sensação de isolamento, dificuldade de raciocinar, diminuição da velocidade de reação, insônia, irritabilidade, distúrbios gastrointestinais, diminuição do nível de atenção, alterações dos hábitos alimentares, sonolência, sensação de fadiga (Lotério, 1998). É de se esperar também que outros sintomas, como os distúrbios do sono e/ou a sonolência diurna possam aparecer, interferindo no humor, na concentração e no estado de vigília (Bittencourt et al., 2009). Não há dados oficiais nacionais sobre o tamanho da população que trabalha em turnos, mas um levantamento da Fundação SEADE mostrou um percentual de 8,6% da população trabalhando desta maneira na área metropolitana de São Paulo (Moreno et al., 2003).

O trabalho dos caminhoneiros situa-se nesse contexto de turnos irregulares com as consequentes repercussões à saúde. Um estudo sobre a vida e o trabalho dos caminhoneiros realizado por Santos (2004), mostra que há cerca de 1,2 milhões de caminhoneiros no Brasil, distribuídos de forma bastante heterogênea quanto aos locais de trabalho. Uma parte realiza o seu trabalho em zonas urbanas, outros em pequenos itinerários nas estradas vicinais. Esses podem retornar ao lar e ao convívio social ao final do dia. Um terceiro grupo realiza o seu trabalho em longos percursos, em rotas estaduais, federais e até internacionais. Nessas situações, passam muito tempo longe das famílias e de seus ambientes sociais. O seu convívio social restringe-se então aos encontros com colegas de trabalho, com os trabalhadores das rodovias e dos postos de serviços das estradas.

Dirigir um número grande de horas por dia tornou-se um fato “naturalizado” pelos caminhoneiros, provavelmente fruto da organização do trabalho que estabelece prazos curtos para a entrega de mercadorias. Um exemplo dessa afirmativa é a fala de um caminhoneiro autônomo, de 74 anos (41 anos de profissão), que mora em Londrina-PR, tem um Mercedes-Benz 1113, ano 65, com o qual transporta trigo na região paranaense e outros estados e que dirige entre 18 a 20 horas diariamente. “Quando a noite está bonita eu finco o pé e só paro ao amanhecer” (Siqueira, 2004).

A forma como a atividade do caminhoneiro se dá, com longas distâncias a percorrer, datas e horários com intervalos curtos para entrega das cargas, remuneração por produtividade (que, provavelmente, obriga o caminhoneiro a trabalhar além do limite contratual), uso de medicamentos para não dormir, pode estar relacionada à gênese dos sintomas e sinais detectados. Para Ferreira e Carneiro (1999), o conflito entre a organização do trabalho e o processo de trabalho é uma das causas da fragilização somática que interfere na saúde mental das pessoas, desorganiza o sistema imunológico (portanto, a defesa espontânea do organismo) predispondo-o a doenças orgânicas.

Já para Dejours (2004), este conflito entre a organização do trabalho e o funcionamento psíquico dos homens dificulta a possibilidade de adaptação, pois o desejo do indivíduo não é contemplado, o que pode fazer emergir o sofrimento patogênico e não a doença orgânica. Os sintomas físicos e psíquicos encontrados neste estudo parecem dar razão aos autores citados, causando perda do bem estar e qualidade de vida para esta classe de trabalhadores.
 Há uma relação aparente entre a forma como o trabalho do caminhoneiro está organizado, que o obriga a trabalhar longas horas do dia, longe da família e do ambiente social onde vive – causando problemas de relacionamento, uso de remédios para não dormir – que levam aos sintomas e sinais encontrados, o que corrobora a afirmação de Dejours (não há doença instalada, mas há sofrimento evidente). Por outro lado, o sofrimento continuado, que fragiliza o sistema imunológico, pode levar às doenças orgânicas como será abordado nos próximos posts.

Sabe-se que o organismo tem limitações  à exposição aguda a longas jornadas de trabalho e que isso  pode trazer agravos à saúde, com maior exposição a riscos como acidentes, por exemplo. Há também a possibilidade do surgimento de doenças funcionais, conforme salienta Canguilhem (1990), pois, segundo ele, as doenças funcionais são quase todas perturbações de ritmo, devidas à fadiga ou a estafa, isto é, qualquer exercício que ultrapasse a justa adaptação das necessidades do indivíduo ao seu meio.

O presente  pesquisa e os resultados encontrados apontam para a necessidade da elaboração de novos estudos, não só em rodovias estaduais, mas também em rodovias federais, as conhecidas BR’s, onde longas distâncias são percorridas e os fatores como a carga horária, o sono, a alimentação e estresse merecem destaque.

Diante desse quadro, uma questão relevante a ser verificada é a possibilidade de relação entre as condições de manutenção e operação das rodovias no Brasil com a qualidade de vida dos profissionais. Podemos supor que, uma vez melhoradas as condições das estradas, com melhores pistas, controle de acostamentos e de faixas de domínios, serviços de suporte mecânico e médico, construção de traçados mais seguros e até mesmo maior segurança contra assaltos e roubos de cargas, o bem estar e a qualidade de vida melhorariam, com o consequente impacto na saúde dos trabalhadores e usuários. Parece-nos ser isso o que aponta a reação dos caminhoneiros à legislação aprovada recentemente.

Finalizamos o post de hoje enfatizando o quanto uma atividade laboral realizada de forma excessiva e fora dos limites físicos e biológicos do indivíduo podem lhe gerar perda da qualidade de vida e do seu bem estar no trabalho.

REFERÊNCIAS:

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