Neste post iremos
abordar um pouco do quanto o bem estar do caminhoneiro é afetado pelas suas
condições de trabalho, este post é uma continuação da temática sobre dos Determinantes Sociais de Saúde (DSS). Do ponto de vista do trabalho, a
sociedade atual é rica em atividades que envolvem as pessoas no exercício das
suas profissões durante as 24 horas do dia.
Fischer
(2004) aponta que o trabalho realizado fora dos horários tradicionais – de 8:00
ou 9:00h até 17:00 ou 18:00h – faz parte dos fatores psicossociais que
interagem no processo saúde-doença. A forma como o trabalho está organizado
provoca impactos sobre o bem-estar e a saúde dos trabalhadores. Portanto,
longas jornadas de trabalho ininterruptas ou com poucos momentos de folga para
recuperação física e mental podem ser fatores que propiciem o aparecimento de
patologias. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) no texto relacionado
a guias sobre normas de trabalho já reconhece – Recomendação nº 178 de 1990 –,
de maneira clara, a necessidade de tratamento diferenciado para os
trabalhadores noturnos.
Destacam-se na recomendação a jornada de
trabalho que não ultrapasse 8:00h diárias; limite de horas de trabalho
extraordinárias; compensação pecuniária, tanto para homens quanto para
mulheres; proteção de segurança e de saúde; apoio em serviços sociais como
transporte de casa para o trabalho e melhoria da qualidade do descanso;
transferência de gestantes de turno noturno para o diurno e até possibilidade
de aposentadoria antecipada para os que trabalham por período de tempo
predeterminado (Bento, 2004).
A
legislação brasileira faz adequações para as jornadas de trabalho noturnas, em
termos de duração. O trabalho noturno, por exemplo, tem hora reduzida igual a
52 minutos e trinta segundos e a remuneração também é maior em 20% em relação à
hora diurna. É considerado trabalho noturno aquele realizado entre 22:00h de um
dia até 05:00h do dia seguinte. O enfoque de proteção à saúde fica bastante
claro na legislação brasileira quando considera o trabalho em turnos e noturno
como agente etiológico ou fator de risco de natureza ocupacional, caracterizado
como má adaptação à organização do horário de trabalho, que entram no CID-10
como Z56.6, bem como outros CIDs, como o F51.2, grupo V (desenvolvimento de
transtornos do ciclo vigília-sono devido a fatores não orgânicos) e G47.2,
grupo A organização das escalas de trabalho em turnos ou em turnos irregulares
– fato cada dia mais frequente para um grande número de trabalhadores – pode
ocasionar o aparecimento de novos sintomas orgânicos e psicológicos.
Um
estudo na aviação civil brasileira mostra que há deterioração física nos
aeronautas pesquisados e que os sintomas físicos e mentais mais frequentes
foram: sensação de isolamento, dificuldade de raciocinar, diminuição da
velocidade de reação, insônia, irritabilidade, distúrbios gastrointestinais,
diminuição do nível de atenção, alterações dos hábitos alimentares, sonolência,
sensação de fadiga (Lotério, 1998). É de se esperar também que outros sintomas,
como os distúrbios do sono e/ou a sonolência diurna possam aparecer,
interferindo no humor, na concentração e no estado de vigília (Bittencourt et
al., 2009). Não há dados oficiais nacionais sobre o tamanho da população
que trabalha em turnos, mas um levantamento da Fundação SEADE mostrou um
percentual de 8,6% da população trabalhando desta maneira na área metropolitana
de São Paulo (Moreno et al., 2003).
O
trabalho dos caminhoneiros situa-se nesse contexto de turnos irregulares com as
consequentes repercussões à saúde. Um estudo sobre a vida e o trabalho dos
caminhoneiros realizado por Santos (2004), mostra que há cerca de 1,2 milhões
de caminhoneiros no Brasil, distribuídos de forma bastante heterogênea quanto
aos locais de trabalho. Uma parte realiza o seu trabalho em zonas urbanas,
outros em pequenos itinerários nas estradas vicinais. Esses podem retornar ao
lar e ao convívio social ao final do dia. Um terceiro grupo realiza o seu
trabalho em longos percursos, em rotas estaduais, federais e até
internacionais. Nessas situações, passam muito tempo longe das famílias e de
seus ambientes sociais. O seu convívio social restringe-se então aos encontros
com colegas de trabalho, com os trabalhadores das rodovias e dos postos de
serviços das estradas.
Dirigir
um número grande de horas por dia tornou-se um fato “naturalizado” pelos
caminhoneiros, provavelmente fruto da organização do trabalho que estabelece
prazos curtos para a entrega de mercadorias. Um exemplo dessa afirmativa é a
fala de um caminhoneiro autônomo, de 74 anos (41 anos de profissão), que mora
em Londrina-PR, tem um Mercedes-Benz 1113, ano 65, com o qual transporta trigo
na região paranaense e outros estados e que dirige entre 18 a 20 horas
diariamente. “Quando a noite está bonita eu finco o pé e só paro ao amanhecer”
(Siqueira, 2004).
A forma como a atividade do caminhoneiro se dá, com longas
distâncias a percorrer, datas e horários com intervalos curtos para entrega das
cargas, remuneração por produtividade (que, provavelmente, obriga o
caminhoneiro a trabalhar além do limite contratual), uso de medicamentos para
não dormir, pode estar relacionada à gênese dos sintomas e sinais detectados.
Para Ferreira e Carneiro (1999), o conflito entre a organização do trabalho e o
processo de trabalho é uma das causas da fragilização somática que interfere na
saúde mental das pessoas, desorganiza o sistema imunológico (portanto, a defesa
espontânea do organismo) predispondo-o a doenças orgânicas.
Já para Dejours (2004), este conflito entre a organização do
trabalho e o funcionamento psíquico dos homens dificulta a possibilidade de
adaptação, pois o desejo do indivíduo não é contemplado, o que pode fazer
emergir o sofrimento patogênico e não a doença orgânica. Os sintomas físicos e
psíquicos encontrados neste estudo parecem dar razão aos autores citados,
causando perda do bem estar e qualidade de vida para esta classe de
trabalhadores.
Há uma relação aparente entre a forma como o trabalho do
caminhoneiro está organizado, que o obriga a trabalhar longas horas do dia,
longe da família e do ambiente social onde vive – causando problemas de
relacionamento, uso de remédios para não dormir – que levam aos sintomas e
sinais encontrados, o que corrobora a afirmação de Dejours (não há doença
instalada, mas há sofrimento evidente). Por outro lado, o sofrimento
continuado, que fragiliza o sistema imunológico, pode levar às doenças
orgânicas como será abordado nos próximos posts.
Sabe-se que o organismo tem limitações à exposição aguda a longas jornadas de
trabalho e que isso pode trazer agravos
à saúde, com maior exposição a riscos como acidentes, por exemplo. Há também a
possibilidade do surgimento de doenças funcionais, conforme salienta Canguilhem
(1990), pois, segundo ele, as doenças funcionais são quase todas perturbações
de ritmo, devidas à fadiga ou a estafa, isto é, qualquer exercício que
ultrapasse a justa adaptação das necessidades do indivíduo ao seu meio.
O presente pesquisa e
os resultados encontrados apontam para a necessidade da elaboração de novos
estudos, não só em rodovias estaduais, mas também em rodovias federais, as
conhecidas BR’s, onde longas distâncias são percorridas e os fatores como a
carga horária, o sono, a alimentação e estresse merecem destaque.
Diante desse quadro, uma questão relevante a ser verificada é
a possibilidade de relação entre as condições de manutenção e operação das
rodovias no Brasil com a qualidade de vida dos profissionais. Podemos supor
que, uma vez melhoradas as condições das estradas, com melhores pistas,
controle de acostamentos e de faixas de domínios, serviços de suporte mecânico
e médico, construção de traçados mais seguros e até mesmo maior segurança
contra assaltos e roubos de cargas, o bem estar e a qualidade de vida melhorariam,
com o consequente impacto na saúde dos trabalhadores e usuários. Parece-nos ser
isso o que aponta a reação dos caminhoneiros à legislação aprovada
recentemente.
Finalizamos o post de hoje enfatizando o quanto uma atividade
laboral realizada de forma excessiva e fora dos limites físicos e biológicos do
indivíduo podem lhe gerar perda da qualidade de vida e do seu bem estar no
trabalho.
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